sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

MEMÓRIAS DE VIRGILIO TEIXEIRA

VIRGÍLIO TEIXEIRA
A MINHA HISTÓRIA 

Testemunho de Virgílio Teixeira à revista "Filmagem" sobre o início do sua carreira cinematográfica

Pede-me a Filmagem que escreva a minha história. Calculem! "A Minha História"... Como se eu já tivesse qualquer coisa para contar - eu que só agora comecei a trilhar o longo caminho do vida cinematográfica.
Não, para vos falar verdade, leitores, nada tenho de sensacional para relatar à laia de autobiografia de cele­bridade. Isso é bom para o Charles Boyer, que por tal sinal nos contou uma série de aventuras mais ou menos verosímeis, embora todas elas encantadoras sob o ponto de vista espectacular.
Também não posso imitar o meu camarada Barreto Poeira (camarada de profissão e de elenco no próximo filme de César de Sá e Brum do Canto, Um Homem às Direitas) por me faltar para isso um passado que valha a pena recordar. Não; também não tenho ainda "passa­do". Espero vir a ter um "futuro", se os produtores não se esquecerem de mim.
Fora isso, apenas vos posso esclarecer sobre aqueles dados biográficos elementares, que qualquer pessoa tem. Assim, dir-vos-ei que nasci no Funchal (a linda cidade da Ilha da Madeira) no dia 26 de Outubro de 1917.
Duas foram, desde sempre, as minhas predilecções: o desporto e a carreira de actor. Desta última me ocu­parei mais tarde.  Por agora limito-me a informá-los de que em 1937 e 1938 fui campeão de soltos acrobáticos.  Como devem calcular, falo-vos de natação e da Ilha da Madeira. De resto, nunca pretendi fazer-me passar por concorrente de Johnny Weissmuller.  Mas, já me sinto bastante satisfeito por ter sido campeão na minha terra...
A por disso, fui guarda-redes das primeiras categorias do "team" de futebol do Sporting Club do Madeira. No entanto, a minha estreia no futebol teve lugar em 1934, quando pertenci ao "onze" do Marítimo que se defrontou com a selecção das Canários.
A minha paixão pelo teatro e pelo cinema vem de longa data, pois, se bem me recordo, ainda andava no escola e já eu sofria com a mágoa interior de não poder representar como os ídolos que então aplaudia no palco e na tela. Essa aspiração suprema acompanhou-me pela vida fora e ainda mais se definiu quando, um dia, desco­bri que a Madeira era constantemente visitada pelas mais famosas "Stars". Mas, também se avolumava em mim a tristeza de não poder realizar o meu sonho, sobretudo por ter de o esconder, dos meus amigos mais íntimos.
Graças à boa camaradagem dos desportistas, e ainda ao facto de eu praticar dois dos mais preferidos pelas “estrelas”, que frequentemente apartavam ao Funchal, natação e ténis, tive oportunidade de ser apresentado a vários astros do cinema mundial, o que mais espicaçava a minha tentação pelo palco e pelos estú­dios.
Logo que conclui a aprendizagem da língua inglesa e depois de a prática me ter consentido um certo domínio do idioma do velha Albion, entrei francamente em con­tacto com Douglas Montgomery, June Clyde, Mary Maguire, June Knight, Dolores del Rio, etc., os quais tive como parceiros em desafios de ténis, ou por compa­nheiros em duras provas de natação.
Deste convívio nasceram então para mim alguns momentos de tortura.  Um dia, Douglas Montgomery perguntou-me à queima roupa por que não me dedica­va eu ao cinema, se reunia todas as condições para ser num futuro próximo um grande actor!...
Imaginem a minha atrapalhação! Eu que não pensa­va outra coisa, sem todavia acreditar possuir as "tais condições", fiquei como menino apanhado em flagrante a fazer uma maldade.
Recorri a todo o meu sangue frio para me mostrar indiferente, não fosse ele rir-se de pretensões que não queria ter, e ainda por eu não estar bem seguro do sin­ceridade da pergunta.
A verdade é que, com verdade ou por ironia, aquela pergunto dava-me novo alento para insistir no pensa­mento dominante: ser actor!
Mais tarde, conheci Mary Maguire, companheira adorável de quem guardo gratíssimos recordações. Também essa me fustigou com pergunto idêntica. Porque não tenta o cinema?
Mas o eterno receio de errar uma vocação, que eu queria classificar apenas de sedução pela 7ª arte, não deixou que eu desse o "passo em frente" a caminho dos estúdios.
Em compensação, dei um "passo em frente" no capí­tulo amoroso, que me levou à categoria de noivo da linda Mary Maguire...
Desfez-se o noivado, ficámos bons amigos, e eu... continuei a jogar ténis - a sonhar com o cinema...
A PRIMEIRA FILMAGEM
Estamos em 1937.
Os dias para mim decorriam serenos entre um "court" de ténis e o mar imenso, os meus dois desportos favoritos.
A ideia do cinema, a ambição do disputado lugar de grande astro da tela, tinha adormecido um pouco, mais por consciência da minha inaptidão do que por falta de estímulos exteriores.
Assim fui apresentado a Salazar Diniz, que no Funchal se dispunha fazer um documentário cine­matográfico.
Como detentor do título de campeão da Madeira em saltos acrobáticos para a água, fui convidado pelo co­nhecido operador a fazer uns saltos que ele pretendia fixar no seu documentário.
Eis-me novamente contagiado pelo desejo de entrar no "campo" duma máquina de filmar!..
Fiz saltos para a água como nunca; tudo quanto pos­suía de habilidade e energia, eu exibi para a câmara de Salazar Diniz!
E, caros leitores, perdoem-me esta inferioridade, no dia em que vi a minha imagem na tela, julguei sufocar de alegria. Antevia já os produtores do mundo inteiro, a peso de oiro?...
Afinal o tempo encarregou-se de me remeter ao justo lugar, quebrando com o esquecimento o meu infantil entusiasmo.
Nem produtores, nem realizadores, deram conta da minha existência!...
O HOMEM QUE SEMPRE GANHOU...
Chegam ao Funchal a actriz June Clyde e seu mari­do Thodon Freeland, grande realizador internacional.
Logo que lhes fui apresentado, nasceu-me uma alma nova. Outra vez às portas dos estúdios, pensava eu. Porém, evitando o assunto cinema, conversava sobre tudo o mais, verificando a vasta cultura e superior espíri­to observador no grande desportista que também era Mr. Thorton Freeland.
Na primeira partida de ténis que joguei com o afamado realizador, senti que ele tinha um forte empe­nho em me mimosear com uma derrota, em consequên­cia do minha reputação desportiva.
No meu cérebro, outra partida - e não menos renhi­do - se disputava.
Ganhar ou perder?  Quem sabe se o resultado da partida vai intervir no meu futuro cinematográfico?
Optei por perder.
Notei porém que o meu parceiro se aborrecia com uma vitória fácil.
Novamente transigi, consentindo derrotas pela tan­gente, fazendo algumas partidas emotivas e de resulta­dos imprevistos.
Mr. Freeland estava encantado com a sua "vítima" e eu rejubilava com aquela simpatia.
Tal como aconteceu com os anteriores, nunca lhe falei no pretensão de ser actor. Mas como das vezes anteriores, foi ele que me perguntou com ar mais natu­ral deste mundo: nunca fez cinema? Gosta do cinema? Porque não experimenta?
Antes que eu me refizesse da surpresa e tivesse tempo de responder, acrescentou:
- Óptimo! Já esperava essa resposta. Prepare as suas malas, porque partimos para Londres depois de ama­nhã, e deixe o resto comigo.
Como num conto de fadas, parti dois dias depois para Londres através do magestoso Atlântico, meu com­panheiro de tantas horas de prazer..
ILUSÕES PERDIDAS
Mal tocámos em Londres, Mr. Freeland viu-se rodea­do por uns tantos senhores, tipo genuinamente inglês, muito apressados por consequência.
Através das poucas palavras que chegaram até mim, percebi estar em presença de importantes produtores de filmes. .
O óbice do questão, a que me conservava alheio, era pretenderem que Mr. Freeland começasse um filme dentro de dois dias.
Deixámos a estação, e em seguida separei-me de Mr. Freeland que me prometeu notícias suas logo que os seus inúmeros afazeres lho permitissem.
Instalei-me num hotel e passei quinze dias sem noti­cias dos estúdios, mas em compensação cortei a cidade em todos os sentidos e cuscuvilhei tudo o que me pare­ceu mais curioso.
Uma manhã, retiniu o telefone no meu quarto.
Dei um salto, pois nada justificava que esse, para mim inútil, aparelho retinisse, se eu não tinha relações em Londres.
Só podia ser Mr. Freeland, e essa circunstância esti­cou-me os nervos como se fosse para o exame do 50 ano sem saber nada.
Do outro lado do fio, era realmente Mr. Freeland que me marcava um encontro nos estúdios de Denham.
Fiquei extático, de telefone em punho e numa posição tão cómica, que dei graças a Deus por estar sozinho quando voltei a encontrar-me.
A despeito do meu quarto se assemelhar a um salão de baile, senti que abafava.
Abri de par em par a janela, acendi um cigarro e aspirei a plenos pulmões o ar da rua.
Galgando com a vista os grandes edifícios da "City", sentia-me a dominar aquela imponente cidade com o meu nome inscrito nos maiores jornais, como caso nº 1da Europa.
Quando se esfumaram estas fantasias, lembrei-me então que nem sequer conhecia um estúdio.
Ía, enfim, tomar contacto com essa "boite à surprise" que me trazia obcecado!
Almocei, ou melhor, estive à mesa, pois que o apetite tinha sido mais veloz do que eu e devia àquela hora pairar sobre Denham.
Tomei um táxi e dirigi-me aos estúdios.
Como é normal na primeira entrevista com a primeira paixão, cheguei antes do hora.
Isto valeu-me uma série de embaraços, pois que a entrada dum estranho nos estúdios, ainda que vá para falar com Mr. Thorton Freeeland, não é das tarefas mais simples.
Intervieram os telefones internos numa azáfama de menina histérica, e, finalmente, fui acompanhado por um empregado através daquela pequena cidade.
De quando em quando era forçado a parar, porque o diligente cicerone chamava a minha atenção para os sinais luminosos que impunham silêncio a toda a gente.
Por fim, cheguei ao estúdio de trabalho, em cujo "sei" trabalhava naquele momento nada mais nada menos que o grande actor Charles Laughton, no filme que em Portugal se chamou Ilusões Perdidas.
Espantoso actor!
Nem tinha coragem de pensar no objectivo da minha visita, na presença daquele artista!
Logo que o "set" ficou livre, Mr. Freeland no mesmo lugar donde havia saído o grande intérprete de Nossa Senhora de Paris apresentou-me a vários directores dos estúdios, combinando comigo dali a dias filmar as primeiras provas.
Entretanto, nos bastidores da política internacional os casos tomavam aspectos de tragédia e a minha situação de estrangeiro não era dos mais brilhantes.
Fui forçado, em consequência do guerra, que era já um caso presente, a regressar à minha pátria, justa­mente quando me supunha mais próximo da realidade, da efectivação dos meus sonhos... que via desfeitos.
Lembrei-me então do filme que rodava no "set" onde fui recebido, Ilusões Perdidas, que mal pressagiou a minha entrada no cinema.
Assim regressei ao Funchal, cheio de... ilusões perdi­das...
EM LISBOA
Pouco tempo depois de ter regressado de Londres, alguma coisa me empurrava para Lisboa onde pretendia fixar residência.
Cedendo a este impulso, meti-me num vapor a cami­nho da mui nobre e leal cidade de Lisboa, a das sete colinas, a de mármore e granito.
Fácil me foi, aqui, tomar contacto com todos quanto trabalham no cinema, onde já contava alguns amigos.
Filmava-se na Tóbis o filme João Ratão.
Fui assistir às filmagens.
Não é fácil descrever a decepção que senti quando ali entrei.
Que diferença!
O material que eu vi em Londres... comparado com este!...
Boa razão têm os estrangeiros em duvidar que os nossos filmes sejam feitos com aquele material.
É necessário, para se trabalhar com "aquilo", ter a veia heróica da nossa raça. Só assim será possível tra­balhar em filmes na nossa terra.
Entretanto, fui apresentado a técnicos, artistas e pro­dutores.
Fiel ao meu princípio, a ninguém confessei a minha ambição.
Até que um dia, através da boa amiga de Ricardo Malheiros, fui apresentado a Armando de Miranda que me convidou a fazer umas provas.
Depois destas, fui solicitado para desempenhar a figura de galã no filme Ave de Arribação.
Aceitei. Fechei contrato e poucos dias depois segui para o Algarve com a equipa de filmagens.
O sonho terminara.
A realidade estava à vista, e o futuro dirá até que ponto foi útil ao Cinema Nacional a minha ambição: ser actor de cinema.

in Filmagem, 6 de Maio de 1944, 20 de Maio de 1944 e 5 de Julho de 1944
(texto publicado em três partes)

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