VIRGÍLIO TEIXEIRA
UM ACTOR ÀS DIREITAS
“I Remember lt Well”. O título da autobiografia de Vincente Minnelli tirado da belíssima e nostálgica melodia de Lerner e Loewe que ouvimos em Gigi, podia servir de exégese a esta evocação de Virgílio Teixeira. "I (too) remember it well'. O meu primeiro "encontro" com o actor que, da sua parte, nunca me viu gordo ou magro, foi mais ou menos durante 1948. A estação passou-me, mas parece-me sentir um cheiro outonal pelas ruas misturado com a maresia habitual de uma vila de pescadores, que eu cruzava de fato domingueiro acompanhado pelo meu tio, que pela mão me levava pela primeira vez ao cinema. Recordo o balcão e a subida pelas escadas que se me afiguravam íngremes (mas que na sequência da descoberta dos imagens que se moviam na tela, se tornariam, para mim, uma espécie de símbolo de degraus para o paraíso, uma escada de Jacob para a terra do faz de conta, das mil e uma aventuras e dos tesouros perdidos), e a expectativa do acontecimento. Recordo umas primeiras imagens em cores fortes que ficaram indeléveis nos meus olhos, imagens em que uns estranhos bonecos se moviam velozmente. Recordo a birra e a irritação quando as luzes se acenderam e me devolveram ao mundo real que me rodeava (o meu ódio aos intervalos nasceu nesse meu primeiro contacto com o cinema), e a alegria com que me apercebi, pouco depois, que de novo se fazia escuro. E começou então uma singular história de salteadores de estrados e de casas isoladas, que atiçaram a recordação de aventuras do "Remexido" (pois do Algarve falo) às portas de Lagos e no serra de Monchique, contadas pela minha avó, pelo meio de histórias de fadas e de terrores que me procuravam doces calafrios. Dessa história filmada jamais esqueci o título, José do Telhado, e se muito tempo depois, ao rever o filme, me senti em parte desiludido, estou-lhe em divida eterna pela paixão que fez em mim nascer pelo cinema. Um amor à primeira vista que ainda me consome (por isso, ainda hoje ao ver um filme, por pior que seja, aceito-o sempre como algo de novo e de bom possível), e o único que levarei para a cova. A imagem de Virgílio Teixeira, pois era ele que dava corpo a esse meu primeiro herói do cinema, está, portanto, ligada a essa experiência primordial, a esse meu baptismo numa nova religião, a da Sétima Arte. E acabamos sempre por ser fiéis, mesmo inconscientes, a essa primeira imagem.
De certo modo ele foi o meu arquétipo do herói de filmes, e muitos dos que depois admirei (um Burt Lancaster logo a seguir, um Richard Greene, um esquecido "swashbuckler" antes de ser o Robin dos Bosques da televisão, que me fez imaginar mil e uma aventuras nas areias da praia, entre os albornozes e os alfanges de O Gavião do Deserto), moldavam-se de acordo com essa imagem primitivo.
Mas talvez (e agora é já um olhar "distanciado" observando essas reacções primevas) que a imagem que mais se lhe adopte em termos cinematográficos seja a de um Tyrone Power, o galã da Fox, opondo-se, no nosso paupérrimo mundo de cinema, ao Errol Flynn que parecia inspirar o seu "rival" António Vilar. Tão paupérrimo era esse mundo que ambos tiveram de procurar fora do país o meio de imporem a sua presença e afirmarem o seu talento, e "disputarem" um espaço para a sua "rivalidade". A Península acabou por ser a sua pátria, com o cinema abolindo as fronteiras e, inclusive, as nacionalidades. Pelo mundo do cinema fora, os dois eram geralmente considerados como actores "espanhóis".
Se a comparação de Vilar com Flynn pode inspirar-se no perfil dos personagens de aventureiros de capa e espada (e ambos interpretaram a figura de Don Juan), a de Virgílio Teixeira com Tyrone Power também poderia ser admitida pois ambos se impõem com "biopics' de salteadores que o folclore de cada um dos países transformou em Robins dos Bosques: Jesse James e José do Telhado. Aliás poderia ainda destacar outras 'relações' cinematográficas entre os dois: os filmes 'históricos' (Captain from Castille/O Capitão de Castela, Prince of Foxes/O Favorito dos Bórgias, The Black Rose/A Rosa Negra, no caso de Power, Rainha Santa, Agustina de Aragão, Cristovão Colombo e a América, com Vilar no titular e A Leoa de Castela, no de Virgílio Teixeira) e uma certa atracção pelo mar, com Teixeira por várias vezes pescador (Heróis do Mar, Nazaré) ou oficial da marinha (A Noiva do Brasil) e Power de pirata (The Black Swan/O Pirata Negro) a oficial, em guerra (Crash Dive/O Submarino Heróico) ou náufrago perdido no oceano (Abandon Ship/0 Mar das Sete Ondas). E se Power foi Zorra em O Sinal do Zorro, Teixeira foi um guerrilheiro basco durante a guerra de carlistas e liberais em Zalacain, o Aventureiro, de Juan de Orduña, possivelmente um dos seus melhores filmes espanhóis, feito em 1954, quando já era uma vedeta no país vizinho. Há pequenos acontecimentos que nos parecem dizer que uma corrente estranha e desconhecida conduz o "destino" dos pessoas, pois Tyrone Power e Virgílio Teixeira iriam encontrar-se no "peplum" que King Vidor foi dirigir em Espanha em 1958, e que seria o último filme comercial do realizador, Solomon and Sheba/Salomão e a Rainha do Sabá, cujas filmagens foram interrompidas devido à morte de Power fulminado por um ataque cardíaco aos 45 anos de idade. Constou brevemente que Teixeira poderia substituí-lo, só que a indústria precisa de nomes seguros e conhecidos pelo que foi um então popular Yul Brynner a tomar o comando dos acções e Gina Lollobrigida nos braços. E foi pena, tanto mais que Virgílio Teixeira já não era novato naquelas andanças, tendo estado presente nos superproduções que Hollywood fazia em Espanha desde os meados do década de 50. Foi mesmo um dos estreantes e num papel de certo relevo.
Foi em 1956. A Espanha lançava uma ofensiva para o reconhecimento político, abrindo as suas portas aos investimentos estrangeiros e as do cinema às companhias de Hollywood em busca de mão de obra e cenários baratos que compensassem as perdas por enquanto sofridas pela lei anti-trust, através da chamada "runaway production" (produção em países estrangeiros) e pela concorrência do televisão, que impunha ao cinema espectáculos cada vez mais grandiosos a fim de recuperar espectadores. Em 1956 Robert Rossen produziu e realizou para a United Artists, perto de Madrid, uma sumptuosa versão filmada da vida e conquistas de Alexandre Magno, com uma equipa de luxo: fotografia de mestre Robert Krasker e um elenco que tinha à cabeça dois "monstros sagrados': Fredric March e Richard Burton, respectivamente Filipe e Alexandre de Macedónia. O filme, Alexander the Great/Alexandre, o Grande, é um dos melhores resultados dessa "runaway production", e no seu elenco constavam ainda os nomes de Claire Bloom, Stanley Baker, Peter Cushing e, em boa posição na "grelha" de partida, Virgílio Teixeira. Cabia-lhe o papel de Ptolomeu, um dos generais e candidatos e herdeiro de Alexandre, aquele que, no fim, interroga o conquistador moribundo: "A quem legas o teu império?", ao que Alexandre responde com um estranho sorriso nos lábios: "Ao mais forte!'.
A partir de então a sua presença, de maior ou menor destaque, é frequente nas produções de Hollywood em Espanha ou co-produções deste país com outros, do "peplum" (The Fall of the Roman Empire/A Queda do Império Romano e El Cid, ambos de Anthony Mann, e ambos com Sophia Loren) ao filme 'histórico' (Dr. Zhivago de David Lecin), do filme de fantasia (o irresistível The Seventh Voyage Of Sinbad de Nothan Juran com magníficos efeitos especiais de Roy Horryhausen, e onde Teixeira compunha o papel de Ali, um divertido amigo de Sinbad) até ao western (com o nosso actor fazendo porte da segunda equipa de "magníficos" ao lado do Yul Brynner, que lhe "roubara" o papel de Salomão, em Return of the Seven/O Regresso dos Sete Magníficos). Nem sempre os seus papéis eram de "composição". Em The Boy Who Stole a Million/O Rapaz que Roubou um Milhão, de Charles Crichton para a Paramount, uma comédia dramática muito interessante, Virgílio Teixeira é cabeça de cartaz no papel do pai do garoto em apuros. Em The Happy Thieves/Os Alegres Ladrões enfileira com (e dá-lhes boa réplica) um lote de actores do gabarito de Rex Harrison, Rita Hayworth, Joseph Wiseman e Alida Valli. Na sua recensão ao filme de Crichfon, a Variety dizia que "Virgílio Texera is excellent" (repare-se na "variação" do seu nome, que aliás passou por muitas outras nos genéricos destes filmes, e que foram de John Texera a Leo Texeira, passando por Virgil e Virgílio, entre Texera e Teixeira). Era nestes filmes geralmente um personagem de origem espanhola, mas em A Man Could Get Killed/A Dança dos Diamantes, de Cliff Owen (1966), desempenha o papel de um inspector do polícia portuguesa. Por uma vez, prestava-se justiça à sua verdadeira nacionalidade. Aliás, o filme era quase totalmente, filmado em Portugal.
Virgílio Teixeira soube gerir a imagem que criara no cinema, não só sabendo retirar-se a tempo como também capitalizá-lo mais tarde em incursões do cinema e no televisão, desde a sua aparição na telenovela Chuva na Areia à passagem pelo filme de José Fonseca e Costa, A Mulher do Próximo.
E é, talvez, o filme que este último evoca, que melhor poder servir de legenda a um actor que soube sempre ser igual a si próprio e dar ao seu trabalho a dignidade de um bom profissional: Um Homem às Direitas. Também ele foi (é) um actor às direitas.
MANUEL CINTRA FERREIRA, in Expresso
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