sexta-feira, 10 de dezembro de 2010

UMA EVOCAÇÃO


VIRGÍLIO TEIXEIRA
UM ACTOR ÀS DIREITAS

“I Remember lt Well”. O título da autobiografia de Vincente Minnelli tirado da belíssima e nostálgica melo­dia de Lerner e Loewe que ouvimos em Gigi, podia servir de exégese a esta evocação de Virgílio Teixeira. "I (too) remember it well'. O meu primeiro "encontro" com o actor que, da sua parte, nunca me viu gordo ou magro, foi mais ou menos durante 1948. A estação passou-me, mas parece-me sentir um cheiro outonal pelas ruas misturado com a maresia habitual de uma vila de pescadores, que eu cruzava de fato domingueiro acom­panhado pelo meu tio, que pela mão me levava pela primeira vez ao cinema. Recordo o balcão e a subida pelas escadas que se me afiguravam íngremes (mas que na sequência da descoberta dos imagens que se movi­am na tela, se tornariam, para mim, uma espécie de símbolo de degraus para o paraíso, uma escada de Jacob para a terra do faz de conta, das mil e uma aven­turas e dos tesouros perdidos), e a expectativa do acon­tecimento. Recordo umas primeiras imagens em cores fortes que ficaram indeléveis nos meus olhos, imagens em que uns estranhos bonecos se moviam velozmente. Recordo a birra e a irritação quando as luzes se acen­deram e me devolveram ao mundo real que me rodea­va (o meu ódio aos intervalos nasceu nesse meu primeiro contacto com o cinema), e a alegria com que me apercebi, pouco depois, que de novo se fazia escuro. E começou então uma singular história de salteadores de estrados e de casas isoladas, que atiçaram a recordação de aventuras do "Remexido" (pois do Algarve falo) às portas de Lagos e no serra de Monchique, contadas pela minha avó, pelo meio de histórias de fadas e de terrores que me procuravam doces calafrios. Dessa história filmada jamais esqueci o título, José do Telhado, e se muito tempo depois, ao rever o filme, me senti em parte desiludido, estou-lhe em divida eterna pela paixão que fez em mim nascer pelo cinema. Um amor à primeira vista que ainda me con­some (por isso, ainda hoje ao ver um filme, por pior que seja, aceito-o sempre como algo de novo e de bom pos­sível), e o único que levarei para a cova. A imagem de Virgílio Teixeira, pois era ele que dava corpo a esse meu primeiro herói do cinema, está, portanto, ligada a essa experiência primordial, a esse meu baptismo numa nova religião, a da Sétima Arte. E acabamos sempre por ser fiéis, mesmo inconscientes, a essa primeira imagem.
De certo modo ele foi o meu arquétipo do herói de filmes, e muitos dos que depois admirei (um Burt Lancaster logo a seguir, um Richard Greene, um esque­cido "swashbuckler" antes de ser o Robin dos Bosques da televisão, que me fez imaginar mil e uma aventuras nas areias da praia, entre os albornozes e os alfanges de O Gavião do Deserto), moldavam-se de acordo com essa imagem primitivo.
Mas talvez (e agora é já um olhar "distanciado" obser­vando essas reacções primevas) que a imagem que mais se lhe adopte em termos cinematográficos seja a de um Tyrone Power, o galã da Fox, opondo-se, no nosso paupérrimo mundo de cinema, ao Errol Flynn que pare­cia inspirar o seu "rival" António Vilar. Tão paupérrimo era esse mundo que ambos tiveram de procurar fora do país o meio de imporem a sua presença e afirmarem o seu talento, e "disputarem" um espaço para a sua "riva­lidade".  A Península acabou por ser a sua pátria, com o cinema abolindo as fronteiras e, inclusive, as nacionali­dades. Pelo mundo do cinema fora, os dois eram geral­mente considerados como actores "espanhóis".
Se a comparação de Vilar com Flynn pode inspirar-se no perfil dos personagens de aventureiros de capa e espa­da (e ambos interpretaram a figura de Don Juan), a de Virgílio Teixeira com Tyrone Power também poderia ser admitida pois ambos se impõem com "biopics' de salteadores que o folclore de cada um dos países trans­formou em Robins dos Bosques: Jesse James e José do Telhado.  Aliás poderia ainda destacar outras 'relações' cinematográficas entre os dois: os filmes 'históricos' (Captain from Castille/O Capitão de Castela, Prince of Foxes/O Favorito dos Bórgias, The Black Rose/A Rosa Negra, no caso de Power, Rainha Santa, Agustina de Aragão, Cristovão Colombo e a América, com Vilar no titular e A Leoa de Castela, no de Virgílio Teixeira) e uma certa atracção pelo mar, com Teixeira por várias vezes pescador (Heróis do Mar, Nazaré) ou oficial da mari­nha (A Noiva do Brasil) e Power de pirata (The Black Swan/O Pirata Negro) a oficial, em guerra (Crash Dive/O Submarino Heróico) ou náufrago perdido no oceano (Abandon Ship/0 Mar das Sete Ondas). E se Power foi Zorra em O Sinal do Zorro, Teixeira foi um guerrilheiro basco durante a guerra de carlistas e liberais em Zalacain, o Aventureiro, de Juan de Orduña, pos­sivelmente um dos seus melhores filmes espanhóis, feito em 1954, quando já era uma vedeta no país vizinho. Há pequenos acontecimentos que nos parecem dizer que uma corrente estranha e desconhecida conduz o "destino" dos pessoas, pois Tyrone Power e Virgílio Teixeira iriam encontrar-se no "peplum" que King Vidor foi dirigir em Espanha em 1958, e que seria o último filme comercial do realizador, Solomon and Sheba/Salomão e a Rainha do Sabá, cujas filmagens foram interrompidas devido à morte de Power fulminado por um ataque cardíaco aos 45 anos de idade. Constou brevemente que Teixeira poderia substituí-lo, só que a indústria precisa de nomes seguros e conhecidos pelo que foi um então popular Yul Brynner a tomar o coman­do dos acções e Gina Lollobrigida nos braços. E foi pena, tanto mais que Virgílio Teixeira já não era novato naquelas andanças, tendo estado presente nos super­produções que Hollywood fazia em Espanha desde os meados do década de 50. Foi mesmo um dos estreantes e num papel de certo relevo.
Foi em 1956. A Espanha lançava uma ofensiva para o reconhecimento político, abrindo as suas portas aos investimentos estrangeiros e as do cinema às compa­nhias de Hollywood em busca de mão de obra e cenários baratos que compensassem as perdas por enquanto sofridas pela lei anti-trust, através da chama­da "runaway production" (produção em países estrangeiros) e pela concorrência do televisão, que impunha ao cinema espectáculos cada vez mais grandiosos a fim de recuperar espectadores.  Em 1956 Robert Rossen produziu e realizou para a United Artists, perto de Madrid, uma sumptuosa versão filmada da vida e conquistas de Alexandre Magno, com uma equipa de luxo: fotografia de mestre Robert Krasker e um elenco que tinha à cabeça dois "monstros sagrados': Fredric March e Richard Burton, respectivamente Filipe e Alexandre de Macedónia. O filme, Alexander the Great/Alexandre, o Grande, é um dos melhores resulta­dos dessa "runaway production", e no seu elenco cons­tavam ainda os nomes de Claire Bloom, Stanley Baker, Peter Cushing e, em boa posição na "grelha" de partida, Virgílio Teixeira. Cabia-lhe o papel de Ptolomeu, um dos generais e candidatos e herdeiro de Alexandre, aquele que, no fim, interroga o conquistador moribundo: "A quem legas o teu império?", ao que Alexandre responde com um estranho sorriso nos lábios: "Ao mais forte!'.
A partir de então a sua presença, de maior ou menor destaque, é frequente nas produções de Hollywood em Espanha ou co-produções deste país com outros, do "peplum" (The Fall of the Roman Empire/A Queda do Império Romano e El Cid, ambos de Anthony Mann, e ambos com Sophia Loren) ao filme 'histórico' (Dr. Zhivago de David Lecin), do filme de fantasia (o irre­sistível The Seventh Voyage Of Sinbad de Nothan Juran com magníficos efeitos especiais de Roy Horryhausen, e onde Teixeira compunha o papel de Ali, um divertido amigo de Sinbad) até ao western (com o nosso actor fazendo porte da segunda equipa de "magníficos" ao lado do Yul Brynner, que lhe "roubara" o papel de Salomão, em Return of the Seven/O Regresso dos Sete Magníficos). Nem sempre os seus papéis eram de "composição". Em The Boy Who Stole a Million/O Rapaz que Roubou um Milhão, de Charles Crichton para a Paramount, uma comédia dramática muito interessante, Virgílio Teixeira é cabeça de cartaz no papel do pai do garoto em apuros. Em The Happy Thieves/Os Alegres Ladrões enfileira com (e dá-lhes boa réplica) um lote de actores do gabarito de Rex Harrison, Rita Hayworth, Joseph Wiseman e Alida Valli. Na sua recensão ao filme de Crichfon, a Variety dizia que "Virgílio Texera is excel­lent" (repare-se na "variação" do seu nome, que aliás passou por muitas outras nos genéricos destes filmes, e que foram de John Texera a Leo Texeira, passando por Virgil e Virgílio, entre Texera e Teixeira). Era nestes filmes geralmente um personagem de origem espanhola, mas em A Man Could Get Killed/A Dança dos Diamantes, de Cliff Owen (1966), desempenha o papel de um inspec­tor do polícia portuguesa. Por uma vez, prestava-se justiça à sua verdadeira nacionalidade. Aliás, o filme era quase totalmente, filmado em Portugal.
Virgílio Teixeira soube gerir a imagem que criara no cine­ma, não só sabendo retirar-se a tempo como também capitalizá-lo mais tarde em incursões do cinema e no televisão, desde a sua aparição na telenovela Chuva na Areia à passagem pelo filme de José Fonseca e Costa, A Mulher do Próximo.
E é, talvez, o filme que este último evoca, que melhor poder servir de legenda a um actor que soube sempre ser igual a si próprio e dar ao seu trabalho a dignidade de um bom profissional: Um Homem às Direitas.  Também ele foi (é) um actor às direitas.
MANUEL CINTRA FERREIRA, in Expresso

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